A recente visita do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, ao Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro, reacendeu um polêmico conflito de narrativas sobre as favelas brasileiras. No meio político, opositores do governo federal acusam o ministro de ter conivência com os criminosos que atuam na favela.
Já o ministro considera “esdrúxula” a afirmação, sustentando que é resultado de preconceito contra os moradores dessa comunidade. Segundo Dino, as autoridades precisam visitar esses territórios.
Territórios historicamente marginalizados e não priorizados pelo poder público, as comunidades do país – e principalmente as do Rio de Janeiro – convivem com o controle armado ilegal de facções criminosas, sejam as ligadas ao tráfico de drogas sejam as milícias que extorquem dinheiro de moradores em troca de uma suposta segurança.
Afinal, autoridades que visitam favelas têm conivência com as quadrilhas criminosas que controlam esses territórios? Representantes do governo precisam da autorização de grupos armados para entrar nas comunidades?
Acusação de conivência com criminosos já havia sido feita ao então candidato à Presidência da República Luiz Inácio Lula da Silva, quando ele visitou, durante a campanha eleitoral, o Complexo do Alemão, que fica relativamente próximo do Complexo da Maré, na zona norte.
Autor do livro Favelas do Rio de Janeiro: História e Direito e pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio), Rafael Soares Gonçalves diz que há preconceito e desconhecimento por trás da narrativa de que autoridades não podem visitar favelas sem que haja acordo com criminosos.
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“Esse debate, que eu considero ridículo, revela uma série de questões. Primeiro, como a sociedade enxerga esses espaços das favelas, como se estivessem fora da cidade, da sociedade.”
Segundo Soares, há uma visão histórica da sociedade de que as favelas são um local de risco. Inicialmente, como risco sanitário, posteriormente, como risco ambiental e, mais recentemente, a partir da década de 80, como risco de segurança pública.
“Obviamente tem algo de realidade [nessa visão]. Você vai subir a uma favela e provavelmente vai achar gente com arma. Eu não quero cair num tipo de romantismo. Existe milícia, existe o tráfico. E esses ‘poderes’ muitas vezes, em grande parte, impactam o cotidiano das pessoas”, explica Gonçalves. “Mas esta é a uma realidade de muitas, e a gente tem uma certa tendência de simplificar as coisas, até porque essas fronteiras no Rio de Janeiro são muito fortes. Uma [pessoa de] classe média ou classe alta muitas vezes nunca botou o pé numa favela, não conhece.”
Diretora da organização não governamental (ONG) Observatório das Favelas, a jornalista Priscila Rodrigues também considera a narrativa de crítica à visita de Flávio Dino, assim como a crítica à campanha de Lula no Complexo do Alemão na eleição de 2022, reflexo de preconceito, de desconhecimento e também de tentativas de isolar as favelas do resto da cidade.
“Tem uma organização de como as coisas funcionam dentro de favelas e periferias, que o restante da cidade não sabe muito por causa desse discurso de apartar, de esconder, de sempre falar da favela e da periferia a partir da violência. Criou-se uma narrativa sobre esses territórios que é uma narrativa irreal, inventada por quem está fora do território.”
Priscila lembra que as facções criminosas não são os únicos atores não estatais que exercem poder dentro das favelas. De acordo com a jornalista, existem vários outros atores que têm legitimidade para agir nesses locais, de forma independente dos grupos criminosos, como associações de moradores e organizações da sociedade civil.
“Na Maré, há uma grande quantidade de organizações da sociedade civil atuando nesses territórios com legitimidade, porque isso vem da luta popular. Associações de moradores, organizações da sociedade civil e outras lideranças têm poder e legitimidade nesses territórios, porque são parte dessa comunidade”, destaca Priscila Rodrigues. “A Maré é um território de muita luta popular historicamente.”
Rafael Gonçalves ressalta que a favela é um local onde o Estado está presente em serviços como escola e educação, então, não é absurdo imaginar que um servidor público possa entrar em uma dessas áreas.
“A sensação que se dá nesse discurso [de críticas à visita do ministro] é que a presença do Estado se dá só pela polícia e só por uma política de coerção. O fato de o Estado estar presente, asfaltando, com escola, assistência, cultura demonstra plenamente que favela é cidade”, afirma.
A pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Sônia Fleury é coordenadora do projeto Dicionário de Favelas Marielle Franco, uma plataforma online que busca reunir verbetes e informações sobre as favelas brasileiras. Sônia destaca que a histórica atuação da Fiocruz dentro do Complexo da Maré, com a realização de diversos projetos comunitários, comprova que não é preciso dialogar com facções criminosas para que o Estado aja dentro de favelas.
“A Fiocruz não tem [nenhuma conivência com facções criminosas], nem precisa ter para entrar na favela. É preciso ter relações profissionais com inúmeras lideranças que estão lá, com as quais estabelece convênios para prestação de serviços. Então, a Fiocruz tem relações com as pessoas com as quais é necessário ter relações para desenvolver projetos, mas não para poder pedir autorização”, diz a pesquisadora.
Sônia Fleury cita como exemplo de atores com papel de liderança na comunidade o Observatório da Maré e o Centro de Estudos e Associações Solidárias da Maré (Ceasm).
A visita
No episódio envolvendo o ministro Flávio Dino, que afirma ter sido acompanhado com escolta policial, a visita à comunidade foi no dia 13 de março e envolveu a participação em um evento promovido pela associação Redes da Maré, uma organização comunitária com mais de 20 anos de atuação no conjunto de favelas.
A coordenadora de Direito e Segurança Pública da Redes da Maré, Liliane Santos, assistente social nascida e criada na Baixa do Sapateiro, uma das 16 comunidades do complexo, conta que o convite feito a Flávio Dino surgiu por ideia da organização internacional Open Society, que é parceira da Redes.
“Para a Open Society, era muito importante trazer uma autoridade que pudesse estar presente numa favela. Para a gente também era muito importante trazer. A gente acredita que só é possível a transformação de realidade como a Maré com um diálogo entre o poder público, sistema de justiça e participação popular”, conta Liliane.
O evento de que Dino participou era, segundo Liliane Santos, o lançamento do boletim anual sobre segurança pública na Maré e contava com a participação de pesquisadores da violência e de organizações sociais que atuam em favelas do Grande Rio.
“Era uma reunião de organizações, numa perspectiva de pautar com o ministro a participação popular nos processos de formulação de políticas públicas de nível nacional. O ministro se demonstrou superaberto. Entregamos um documento com recomendações e propostas sobre atuação do Ministério da Justiça neste governo e nos colocamos à disposição para contribuir no que fosse necessário.”
Segundo Liliane Santos, na visita, Flávio Dino a convidou para o relançamento do Programa Nacional de Segurança com Cidadania, chamado de Pronasci II, dois dias depois em Brasília.
“Estive lá para dialogar sobre essa temática, de forma mais ampla, com a presença do presidente Lula. A visita [de autoridades] gera desdobramentos de participação social, que são fundamentais para a elaboração de uma política pública mais abrangente no que diz respeito à segurança pública. Para a Redes da Maré, só é possível consolidar políticas a partir da escuta de pessoas que fazem uso desse serviço e com participação popular”.
Segundo a coordenadora da ONG, a Redes da Maré começou a atuar na comunidade no início dos anos 2000, depois que moradores do local começaram a entrar nas universidades. Daí surgiu a ideia de criar um pré-vestibular social para ajudar outros jovens da Maré a ingressar no ensino superior.
Com o passar do tempo, a organização começou a atuar também em eixos como cultura, direitos urbanos e ambientais, saúde e segurança pública.
No último eixo, a organização atua produzindo estudos, acompanhando operações policiais para checar violações de direitos, buscando alternativas para redução de danos em confrontos armados, auxiliando egressos do sistema penitenciário que querem ser inseridos no mercado de trabalho e acolhendo famílias de vítimas da violência, entre outras atividades.
“A gente experimenta o direito à saúde [com 11 unidades de atendimento], o direito à educação [com 52 escolas]. Mas o direito à segurança pública ainda não está consolidado”, conta Liliane Santos.
Fonte: Agência Brasil